Sala de espelhos

Todo retrato que um artista faz, diz a crítica, é um autorretrato. Através dele, o autor busca a sua melhor imagem, sua alma e sua essência; ele também procura aí a melhor amostra de sua arte, seu ofício e seu fazer, no ato da própria prática daquela vida, se rebatendo ali, em pleno fluxo enfim. Disposto a explorar esse reflexo desde o início do seu trabalho, Xikão Xikão vem produzindo um jogo efetivo entre imagens de seu rosto, de seu corpo e de seu ser, através de peles gráfico-pictóricas e véus fotográficos, em uma obra de propriedades poéticas muito peculiares, em novos ciclos cada vez mais interessantes.

Essa sala de espelhos é cheia de possibilidades de humor ou horror, e traz a chance de um trânsito livre entre interiorização e exteriorização, através de um trabalho – desenho, pintura, fotografia ou impressão – tão antigo quanto novo, sempre muito intenso para quem o faz. Por isso mesmo é que essa força chega ao espectador com uma carga extra de drama (tragédia, comédia, farsa), conforme se verifica nas imagens do artista.

No caso de Xikão, primeiro vem a auto-fotografia (com algo de um Shakespeare reduzido), pontuada por alguns adereços indiciais, criando um autor-personagem, um pintor quase-performer, que anuncia uma série de dualidades que se aprofundam adiante. Depois, ele faz as primeiras pinturas, aguadas de pinceladas densas e cores sujas (ao contrário das fotos, de superfícies bastante limpas), quando a beleza da duplicidade já se estabelece, segue e não cessa mais.

Tudo envolve uma corajosa movimentação que preenche as obras de uma força visível e inequívoca, essencial para que todo trabalho transmutado em fazer ativo salte de um plano simplesmente visual para outro, emotivo e/ou mental, no qual a imagem faz sua arte. Isso tudo, também e ainda, faz o artista, o pintor-desenhista-fotógrafo-performer, como ele mesmo deseja, cria e atua.

Ainda podemos dialogar aqui com as têmperas de Pompéia, os autorretratos de Albrecht Dürer e Van Gogh, as várias versões de pintor & modelo de Picasso, as figuras icônicas de Andy Warhol e até mesmo com o cinema de Stanley Kubrick (“A Laranja Mecânica” e “Barry Lyndon”) ou Derek Jarman (“Caravaggio” e “Eduardo II”), lembrando ainda “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde. Como Francisco Costa – o Xikão Xikão – e todos eles, cada qual inventor de seu próprio quebra-cabeça, imagino a arte como um moto-perpétuo, um mecanismo contínuo e sistematicamente livre, capaz de funcionar eternamente, transformando em trabalho toda a energia recebida/produzida, fazendo algo que é aí – a coisa em reflexo com sua vida – fluir e continuar indefinidamente.

Mário Azevedo